sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A nova moralidade tecnológica

A partir da sugestão da professora Jacqueline para observarmos a atitude dos consumidores no momento da compra, visitei algumas lojas de telefones celulares. Eu sempre achei, ainda sem tanta convicção, que as pessoas compram produtos com o mesmo entusiasmo com que usam esses produtos. A observação dos consumidores durante a compra de celulares proporcionou a convicção que me faltava.

Há um nítido entusiasmo, principalmente das mulheres, quando compram aparelhos celulares, que se repete em poucos outros casos, como o das compras de sapatos. Mas a compra de celulares transmite um entusiasmo diferente, que é um entusiasmo acompanhado por uma veneração, materializado em um acatamento velado das explicações dos vendedores. Essa adoração transforma-se em um culto que se populariza e se estende nas relações sociais, o que me leva a concluir que os artefatos tecnológicos conseguem substituir o Ser Supremo como objeto de devoção.

Toda essa exasperação tecnológica começou com Norbert Wiener, um garoto prodígio que foi Ph.D. em matemática em Harvard aos 19 anos, que cunhou o termo cibernética em 1948, quando publicou um livro com esse nome. Antes disso, ele pesquisou física probabilística e trabalhou para o governo americano no período da guerra, o que o condicionou a propor que o desenvolvimento dos computadores e de artefatos tecnológicos deveria se ajustar à capacidade dos seres humanos em controlá-los. Ele foi o criador do tecnoTUDOQUESTAAÍ a partir de uma visão nitidamente religiosa.

Isso ficou mais claro quando, alguns anos após a gerra, ele publicou Deus, Golem e Cia.: um comentário sobre certos pontos de contato entre cibernética e religião, no qual afirma que "a máquina é a contrapartida moderna" à adoração religiosa. E abriu caminho para que autores técnico-religiosos de discutível profundidade analítica mas de arrebatadora aceitação popular, como Marshall McLuhan, emergissem para o pico daquilo que Juremir Machado da Silva qualificou de bolsa de valores do mercado intelectual globalizado.

Wiener foi ainda mais longe em seu Deus, Golem e Cia e vislumbrou um futuro que mesmo hoje ainda engatinha: o dos robôs inteligentes que se autorreproduzem. "É emocionalmente perturbadora a ideia de que a suposta criação do homem e dos animais por Deus, a produção dos seres vivos de acordo com sua classe e a possível reprodução de máquinas formam parte da mesma ordem de fenômenos, tal como as especulações de Darwin sobre a evolução e a origem do homem foram perturbadoras." (a tradução é minha)

Mas voltando à substituição da religião pelos brinquedos tecnológicos, percurso daquilo que Descartes iniciou quando discretamente assentou o método científico no lugar da fé religiosa, mergulha-se atualmente na sacramentação do sacerdote Steve Jobs enquanto a reglião definha lentamente. Ou seja, o secularismo tradicional transmuta-se em sectarismo tenológico. E é importante observar como mães e filhas vão entusiasmadas às compras de celulares e de computadores comparando com o estudo de Hart Nelsen, segundo o qual as mães exercem fundamental influência sobre as filhas quanto à manutenção do vínculo religioso.

De todo modo, há uma influência significativa da atual publicidade nesse frenesi. No ano passado, a professora Maria Eduarda da Mota Rocha, da Universidade Federal de Pernambuco, divulgou uma pesquisa chamada A Nova Retórica do Capital, publicado pela Edusp, em que sustenta que a publicidade se tornou o refúgio da moralidade contemporânea. O texto evidencia a percepção de que a publicidade evoluiu da argumentação direta para o convencimento pela "inclusão" e pelo "pertencer", além da "qualidade de vida" e da "responsabilidade social". "O fracasso da modernização e a transformação do espaço público no anos 80 forçaram o capital, por meio dos agentes publicitários, a alterar sua retórica para contemplar uma promessa de reconciliação entre a finalidade do lucro e o bem-estar coletivo e individual".

Esse bem-estar, obviamente, hoje também exige o consumo das parafernálias para ser atingido. Não se discute mais a obrigatoriedade da fé em Deus para fazer parte da sociedade, como meio importante de coesão social como foi para as pré-civilizações. Hoje, não é mais possível pertencer sem sacar da bolsa o último modelo do desejado brinquedinho de falar.

Versão do trabalho de Maria Eduarda da Mota Rocha publicado pela revista Revcom: A nova retórica do grande capital: a publicidade brasileira entre o neoliberalismo e a democratização

Um comentário:

  1. Muito bom Calazans. É um prazer enorme ter como aluno uma pessoa com análises brilhantes, sempre atento aos debates, tanto de opinião quanto de mercado.

    ResponderExcluir